Alimento como crítica e retomada cultural dos povos na Bienal Sesc de Dança
02/10/2025
(Foto: Reprodução) Rito Artistico Farinha Poetica (Casa do Lago UNICAMP) – Crédito: Rubens Tamashiro
Nesta 14ª edição da Bienal Sesc de Dança, realizada em Campinas até 5 de outubro, o alimento deixa de ser apenas sustento e se transforma em linguagem, memória e resistência.
Em dois espetáculos marcantes — Rito Artístico: Farinha Poética, de Juani Maniva, e Le Sacre du Sucre, de Lēnablou — a produção da farinha de mandioca e o cultivo do açúcar são revisitados como práticas coreográficas e rituais de cura, denúncia e reconexão com a ancestralidade.
Farinha Poética: o corpo como casa e território
Na performance ritualística Farinha Poética, o artista paraense Juani Maniva retorna às suas raízes em Concórdia do Pará para propor um reencontro entre corpo, território e ancestralidade.
Inspirado na produção artesanal da farinha de mandioca, prática que permeia sua infância e a história de sua família, Maniva transforma gestos cotidianos em coreografia: descascar a mandioca, torrar a farinha, tomar banho de igarapé, acender lamparinas.
Rito Artistico Farinha Poetica (Casa do Lago UNICAMP). Foto - Rubens Tamashiro – Crédito: Divulgação
“Esses gestos estão impregnados de sentidos e memórias. Não apenas para mim, mas para quem vem dos interiores da Amazônia. Quando convocados no rito artístico, criam-se portais relacionais de memórias pessoais e coletivas”, afirmou o artista-pesquisador em entrevista ao Programa de Sala da Bienal.
A obra convida o público a um rito de esperançar coletivo, onde o íntimo se entrelaça ao coletivo.
“Todos estamos em uma jornada e precisamos de um rito de cura para continuá-la”, diz Maniva.
A dança, para ele, é espaço de denúncia, celebração e reconexão com tecnologias ancestrais que apontam caminhos para uma existência mais harmônica com o planeta.
Quem é Juani Maniva?
Juani Maniva é artista da Amazônia, paraense, nascido em Concórdia do Pará. Assim como professor e pesquisador que atua principalmente no campo da dança, tecendo diálogos entre arte, educação e as diversidades sexual, de gênero, racial e territorial.
É doutor e mestre em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA), pedagogo pelas Faculdades Integradas Ipiranga e técnico em Dança pela Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Le Sacre du Sucre: o açúcar como símbolo de resistência
Já em Le Sacre du Sucre, a artista guadalupense Lēnablou contorna a história colonial de seu país (Guadalupe, que é um território ultramarino francês), onde o cultivo do açúcar foi motor da escravização e propõe uma ode à liberdade.
A partir da matriz gwoka, prática musical e coreográfica de Guadalupe, Lēnablou constrói um espetáculo que valoriza o improviso, a instabilidade e a expressão individual.
Acompanhada de dois performers que cantam, dançam e tocam instrumentos percussivos, a artista coloca em cena o conceito de bigidi, filosofia que celebra a instabilidade fértil e a adaptação contínua.
“É a harmonia do caos”, define. O espetáculo transita entre cantos e movimentos imprevisíveis, cultivando um diálogo entre corpo dançante e corpo sonoro.
Mais do que uma crítica à história colonial, Le Sacre du Sucre é uma celebração da sabedoria neocaribenha e da potência criativa de um povo que ressignifica sua dor em arte.
Quem é a artista guadalupense Lēnablou?
Lēnablou é doutora em Antropologia, bailarina, coreógrafa e pedagoga. Nascida em Guadalupe (Caribe francês), ela articula criação e transmissão a partir da matriz gwoka, prática musical e coreográfica guadalupense. Formulou o conceito de bigidi, uma filosofia de instabilidade fértil e adaptação contínua.
Autophagies: comer é um ato político
Autophagies no Sesc Campinas. Crédito - Rubens Tamashiro
Já em Autophagies, da diretora franco-malinke Eva Doumbia, o palco se transforma em cozinha e o espetáculo em uma eucaristia documental. Enquanto a atriz Mariela Santiago prepara um mafê, ensopado africano, o público é convidado a refletir sobre as origens dos alimentos e suas implicações políticas, sociais e ambientais.
A obra propõe que comamos conscientemente, reconhecendo os paradoxos do que está em nosso prato. Entre histórias, anedotas e aromas, o espetáculo convida o público a repensar seus hábitos e preconceitos, transformando a refeição em um ato de consciência e resistência.
“Quanto mais trabalho neste texto, mais compreendo que a alimentação é a base da política, das relações entre os seres humanos e também entre todas as espécies. A alimentação de uns permite a reprodução dos outros. Nos seres humanos, é o ponto de partida da colonização. Eu digo que o problema começou para nós, os negros, com a loucura do açúcar entre os brancos. Mas isso teve início antes. O Império Romano colonizou e impôs suas culturas. O trigo está no centro do comércio no Oriente Médio desde a Antiguidade. O que é muito contemporâneo é que não temos mais consciência disso. Comemos animais mortos sem fazer a conexão com seus corpos vivos e não sabemos quem cultivou nossos vegetais. Estamos desconectados de nossa vida”, afirma Eva Doumbia.
Quem é Eva Doumbia?
Eva Doumbia é filha de mãe francesa e de pai malinke e cresceu em Gonfreville l’Orcher, comunidade operária no norte da França. Estudou letras modernas e teatrais, além de direção. Seu trabalho é híbrido, utilizando-se de música, literatura, dança, ciências sociais, culinária e penteados.
Dança como alimento da memória
Na Bienal Sesc de Dança, o alimento é rito, é política, é poesia. A farinha, o açúcar e o mafê, símbolos de culturas marcadas pela resistência, ganham corpo e movimento em espetáculos que não apenas emocionam, mas também provocam. Em tempos de urgência por reconexão com o passado e por reinvenção do presente, a dança se afirma como espaço de cura, denúncia e celebração.
Onde posso comprar ingressos da Bienal Sesc de Dança?
A 14ª edição da Bienal Sesc de Dança conta com atividades gratuitas e com valores a partir de R$ 12. Os ingressos estão disponíveis pelo site, app e nas unidades do Sesc SP.
Para mais informações sobre a 14ª Bienal Sesc de Dança, acesse o site sescsp.org.br/bienaldedanca.